Na época do Ensino Médio, Cauã Pacheco de Lima nem pensava em fazer faculdade – esse não era um tema discutido ou incentivado na escola pública onde estudava. Tanto que, após terminar o colegial, ele trabalhou por quatro anos em diferentes áreas: em uma gráfica, como digitador e operador de scanner; nos Correios, em uma estação de triagem de encomendas; e em uma empresa de telecomunicações, com gestão de equipamentos. Com o passar do tempo e com pouca perspectiva de conseguir uma promoção, ele resolveu voltar a estudar. Fez cursinho e conseguiu ingressar na Universidade de São Paulo (USP) com 24 anos para estudar ciência. Hoje, aos 30, Cauã é aluno de mestrado do Instituto Butantan e pesquisa anticorpos monoclonais contra o tétano.
Foi durante os estudos preparatórios para o vestibular que a paixão pela ciência aflorou, já que o conteúdo apresentado na escola não era muito aprofundado. Por isso, muitos de seus colegas se surpreenderam com o fato de ele ter feito uma graduação, especialmente na área de ciências.
“Eu mal tinha aula de biologia, química e física, então não era algo esperado de mim fazer o que eu faço hoje. Mas no cursinho, a minha percepção de mundo e o meu senso crítico foram mudando”
Cauã ingressou no curso de graduação em Informática Biomédica na USP de Ribeirão Preto, onde ficou durante um ano. Depois, participou de um processo seletivo de transferência interna e foi selecionado para o curso de Ciências Fundamentais para a Saúde, no Instituto de Ciências Biomédicas da USP, em São Paulo – uma graduação voltada para formar pesquisadores. E foi lá, dentro dos laboratórios, que ele se encontrou.
O estudante se formou no início de 2022 e, poucos meses depois, em março, foi aprovado no mestrado da Escola Superior do Instituto Butantan (ESIB). Ele atua no Laboratório de Biofármacos, dirigido pela pesquisadora científica Ana Maria Moro, em um projeto sobre anticorpos monoclonais antitetânicos. O objetivo é desenvolver uma alternativa de tratamento mais específica contra o tétano e com menos risco de causar reações alérgicas do que a terapia tradicional, o soro antitetânico.
“Desde que entrei na USP, o meu objetivo sempre foi entrar no Butantan, por ser um instituto de pesquisa de referência e que eu admirava muito. O que mais me encanta na ciência é buscar a verdade, e aplicar esse conhecimento para ajudar pessoas”
Dedicação integral
Durante a faculdade, os desafios foram muitos. Morando na zona leste de São Paulo, Cauã gastava cerca de três horas por dia no transporte público para se deslocar até a USP. Como o curso era em tempo integral, sobrava pouquíssimo tempo para fazer as tarefas durante a semana, então muitas vezes ele passava finais de semana inteiros estudando. Além disso, para conseguir bolsas de pesquisa, a pressão para manter boas notas era grande. Junto com a graduação, o estudante fez dois projetos de iniciação científica nas áreas de parasitologia e imunologia, além de ter participado de um projeto de cultura e extensão universitária.
Seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), conduzido durante a pandemia, foi sobre o perfil inflamatório de indivíduos hipertensos com Covid-19. Ao analisar parâmetros do sangue de pacientes e questionários de frequência alimentar, obtidos do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, Cauã observou que o consumo excessivo de gordura saturada em pessoas com hipertensão estava relacionado a uma maior gravidade da infecção pelo coronavírus.
“Eu não tinha uma ferramenta de bioinformática para analisar os dados, então precisei fazer tudo ‘à mão’, pelo Excel. Foi desafiador, mas gostei muito de trabalhar com processamento de dados, análises e correlações. Depois que entreguei o TCC, meus resultados também contribuíram para outras pesquisas do laboratório”
Contribuição para a saúde pública
Agora, no Butantan, Cauã continua na missão de produzir conhecimentos para serem futuramente aplicados na saúde da população. Para auxiliar nos estudos de anticorpos monoclonais antitetânicos, o mestrando investiga como as células se comportam diante da infecção pela toxina e, com isso, busca identificar marcadores importantes que possam servir de alvo para esse novo tratamento.
O tétano é uma infecção aguda e grave causada pela toxina da bactéria Clostridium tetani, que entra no organismo por meio de ferimentos ou lesões de pele. A infecção se manifesta por aumento da tensão muscular geral e tem uma taxa de letalidade de 33%.
“Quando a toxina entra na corrente sanguínea e linfática, ela pode chegar ao sistema nervoso central. Lá, ela bloqueia a liberação de neurotransmissores inibitórios, que regulam a nossa movimentação. Com isso, a musculatura passa a não ser inibida, ficando sempre rígida, provocando espasmos musculares graves e dolorosos. As mortes costumam ocorrer por falha respiratória devido a contratura dos músculos abdominais, o que leva a dificuldades respiratórias”, explica Cauã.
Com o soro antitetânico desenvolvido pelo Butantan e uma vacina disponível desde a década de 1920, os casos e mortes da doença reduziram muito. No entanto, o tétano ainda é um problema no Brasil, especialmente em regiões rurais e para indivíduos que não tomaram o imunizante ou não receberam a dose de reforço, indicada a cada dez anos. Foram mais de 2 mil casos e 788 óbitos entre 2012 e 2021, a maioria entre aposentados, trabalhadores agropecuários, pedreiros e donas de casa.
Reportagem: Aline Tavares
Fotos: Comunicação Butantan